domingo, 30 de dezembro de 2018

A criação dos diálogos

O diálogo é - indiscutivelmente - a minha parte preferida de qualquer história. Quando as personagens falam, tudo se torna mais real, mais forte, mais profundo. É aquele momento em que me debruço e deixo fluir, deixo as personagens serem elas próprias, revelarem-se, dizerem quem são, porque são assim, para onde vão... Bons diálogos transmitem veracidade à história. De entre tudo, é aqui que eu afundo e também é aqui que mais me entrego.

Características do diálogo

~ a estrutura:

Alguns de vós perguntar-se-ão para que é preciso saber a estrutura dos diálogos, outros passarão este tópico à frente, porque não interessa, mas a verdade é que há imensos textos nas plataformas online que apresentam estruturas muito desapropriadas para os diálogos. Ninguém aqui é Saramago, portanto vamos seguir as regras:

* Usar travessão antes da fala da personagem: – 
* Usar travessão se acrescentar informações depois da fala: 
* Inserir parágrafo  para mudar de interlocutor/ personagem
* Respeitar as regras acima com rigor
* Relembrar as regras gramaticais da língua, nomeadamente em termos de pontuação
* Concordar a pontuação com o verbo associado (se termina com ponto de interrogação e quiser escrever informação referencial, use o verbo perguntar ou questionar ou outro sinónimo)

Explore a sua personagem no habitat dela: a fala. 

~ o "narrador":

Como as minhas histórias são sempre escritas na 1ª pessoa, o narrador é sempre a personagem principal; no entanto, há quem escreva na 3ª pessoa. Independentemente de quem é o narrador da sua história, encontre-o. É ele que vai contar a história ao leitor: a sua (1ª pessoa) ou a do outro/ de alguém (3ª pessoa).

~ verbos referenciais de diálogo:

Costumo distinguir os verbos em três grupos:

- linguagem  (disse, perguntou, falou, murmurou...)
- sentimentos/ perceções/emoções (senti, doeu, almejei, desejei, precisei...)
- postura e gestos (olhei, desviei o olhar, encolhi os ombros...)

Faço listas. Procuro sinónimos. Sou chata nisto. Se repetir duas vezes seguidas "disse" preciso de substituir rapidamente um deles.

Acredito que não precisamos de encher o diálogo de informações complementares, devemos preocupar-nos em fornecer ao leitor o máximo de referências possíveis para que ele acompanhe a história seja ao nível de sentimentos, de perceções, da forma como as personagens reagem, seja através dos movimentos, do espaço, do ambiente.

Exemplo:

-  dizer/ murmurar/ falar/ responder/ sussurrar/ bramir/ resmungar/ protestar/ uivar / gritar/ esquivar-se/ guinar / vociferar/ exclamar / perguntar / avisar / persuadir/ criticar/ avaliar/ desabrochar/ ....

Exemplo de diálogo 1:

Ele voltou-se para mim com um olhar fulminante.
- De certeza que estás bem? - perguntou ironicamente.
- O que tens tu com isso? - devolvi numa postura altiva e senti o coração espalmar-se contra o meu peito.

Exemplo de diálogo 2:

Ele voltou-se para mim.
- De certeza que estás bem?
- O que tens tu com isso?

observação: no diálogo 1 temos mais informação complementar, percebemos o estado de espírito das personagens, no diálogo 2 não temos essa informação, mas ela faz falta? Não sei, não li o que estava antes... a questão é que é o escritor que sabe se é preciso colocar informações e referências ou não. Pergunte-se se precisa. Experimente fingir que é leitor (vai ser, para sempre, leitor da sua história, pratique).
Haverá momentos em que optará por colocar informações extra nos diálogos e noutras situações não precisará. Seja sensível ao diálogo, encontre o que precisa de lá colocar: sem medo, se falhar, faça de novo.

observação: respeite os tempos verbais, se escreve no presente, faça-o sempre no presente, a não ser que faça sentido usar um dos pretéritos.

Aprenda verbos novos, estenda-se ao comprido quando for para escrever, abarque tudo, não deixe nada por explorar e perceba que um bom escritor não nasce ensinado, precisa de trabalhar muito e de crescer todos os dias na escrita.

~ os adjetivos:

Um bom diálogo complementa as características próprias deste tipo de texto não só com as regras gramaticais da língua, mas também com outros elementos, nomeadamente os verbos e os adjetivos.

O uso desta classe gramatical (adjetivo) deve ser propício para transmitir informações sobre as personagens e dar-lhes "vida".
Se precisar, faça listas de adjetivos, também. Que mal tem? Nenhum. Enquanto faz as listas, apreende, quando apreende já nem precisa de estar sempre a olhar para a lista. Depois agrupe com os verbos em sintonia com o que quer dizer, como quer dizer, o que estão as personagens a dizer/a fazer. Aqui não há regras, nem segredos, nem conselhos. É a sua história, terá que a contar como quiser (o livre arbítrio dos escritores).

Desenvolvimento do diálogo

Acredito que os tópicos acima (características do diálogo) são as bases, as paredes e o teto são trabalho exclusivo daquele que escreve. Aproveite os diálogos para transmitir o que quer sobre as suas personagens. Podemos dizer muito na narração, na descrição, mas nada melhor do que vermos realmente a acontecer: o diálogo é o momento em que as personagens aparecem em cena e em tempo real transformam a história em algo concreto. Deixe-as falar. Deixe-as mostrarem-se. Deixe-as fazerem rir, chorar ou até chocar o leitor. Deixe-as chegar perto do leitor! Saia da frente (narrador) e deixe as personagens mostrarem quem elas são sem filtros, sem depurações, sem quaisquer embelezamentos. Não há personagens perfeitas, há personagens reais e complexas. O diálogo é o momento a solo das personagens.


Nota final: 

Vai encontrar muitos livros cheios de regras de como escrever diálogos. Não se deixe contaminar, nem permita que o tomem como burro ou parvo, o escritor é dono da sua história e deve seguir o seu próprio caminho quando escreve os seus diálogos, quando põe as suas personagens a falar. Ainda assim, devemos conhecer as regras só para termos o gosto de as saber contornar, de conseguir brincar com a língua como se fosse um jogo.
Dê o seu melhor, como sempre. Só o melhor é pedido quando se escreve.

1 comentário:

Diga-me o que pensa, aquilo que quiser.

Doce memória, eterno amor