quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

COMO ENCONTRAR E MANTER O FIO NARRATIVO?

Não é possível definir "fio narrativo" sem antes apresentar alguns dos pontos-chave que ajudam a perceber qual é o fio narrativo da história que estamos a escrever e como podemos mantê-lo. 
Alerto que o que aqui se apresenta é um ponto de vista baseado no meu trabalho e nos meus conhecimentos, não pretende ser uma lista de regras. 
Escrever é uma relação que se cria entre o "escritor" e a sua própria imaginação com recurso às palavras, não deve ser entendida como um processo idêntico/ igual para todos nós. Cada um deve encontrar a sua própria relação com a escrita. O que aqui vos apresento é a minha maneira de trabalhar. 

O PONTO DE PARTIDA: o tema e o género.

As histórias são como estendais que se vão preenchendo com peças. Para que haja sequência entre uma e outra peça - um e outro episódio - é preciso que cada peça faça sentido num determinado contexto ou cairemos no ridículo de andar a colar capítulos sem qualquer ligação entre si. 
É preciso, muito antes sequer de começar, ter um ponto de partida, uma "mensagem/ideia", vulgarmente também conhecido como o "tema". Muitas vezes, começamos apenas com a vontade de escrever uma história e um fragmento muito pequenino de uma ideia que gostaríamos de desenvolver. Só! E com o tempo tornam-se histórias tão profundas que nem sabemos como lá chegámos, portanto, repito, o importante é ter alguma coisa e se não tivermos, teremos que arranjar. Por norma, há sempre qualquer coisa sobre a qual queremos escrever, então, vamos investir nisso. 
Como? 
Estudando essa ideia e trabalhando nela. Ler livros, procurar na internet, falar com pessoas, ver filmes, observar os outros e deixar a imaginação fluir. 
Anotem tudo o que encontrarem (mesmo que possa não ser assim tão relevante), mais tarde podem voltar às vossas notas para encontrarem as respostas aos bloqueios, às perguntas, aos mil e um dilemas que quem se atreve a escrever uma história enfrenta. 

Depois, escolha o seu género. Não o faça para ser melhor do que "fulano", por favor, a escrita não é uma competição, mas também não entre nisto para desistir ou falhar, está bem? Coragem. O caminho é seu, ninguém o está a empurrar. Escrever deve ser algo seu e apenas seu, depois partilhe com os outros (mais para a frente). 

Quer escrever um romance? Vá ler romances e ver filmes romanticos desde o cliché até ao mais dramático possível. Também há a parte cómica/divertida. Pode ser importante, se quiser dar uma ligeireza na história se entretanto o tema for pesado.

Quer escrever um thriller? Vá ler thrillers e ver filmes. 

E por aí fora... 

Ninguém deve entrar num género sem ter lido bastante e conseguir citar de cor pelo menos cinco livros de diferentes autores. É importante saber de cor (mesmo de cor) as características comuns do género que queremos trabalhar. Dá muito trabalho? Pois, esse é um dos problemas da escrita... se não quiser ter trabalho, pode sempre adquirir livros já escritos. :) 

Acredito que a maioria dos "escritores" ou que querem ser qualquer coisa na escrita já fizeram isso tudo - já leram muitos livros (mais do que qualquer outra pessoa que conheça), sabe distinguir uma crónica de um romance, interpreta poesia dentro dos limites e também é inteligente o suficiente para saber que escrever é um dos trabalho mais mal pagos da sociedade... 
E, assim, pode seguir para a próxima fase na qual é A PESSOA MAIS IMPORTANTE. Já disse isto? Pois é, ninguém lho vai dizer, mas se escrever uma história - seja ela qual for - será sempre, mas sempre, a pessoa mais importante dessa história: é o criador. Nunca se esqueça que ela só vai existir, porque a escreveu. 

AS ESCOLHAS: 

Costumo dizer sistematicamente que a escrita de um livro é uma sucessão de escolhas. Aquele que escreve deve escolher o que considera ser o melhor: o nome das personagens; o perfil físico e psicológico; estrutura familiar; espaço físico onde se desenrola a história e o respetivo tempo cronológico. Há um enorme tempo de escolhas durante o primeiro terço da narração (mais ou menos). 
Nada disto é imediato e podemos descobrir muitos destes aspetos literários enquanto se escreve. A escrita é um caminho que se faz escrevendo. Ninguém vai deixar de escrever um livro só porque não tem logo tudo decidido quando começa. Aliás, desconfio imenso daquelas pessoas que dizem que sabiam tudo desde o início, porque nunca ninguém sabe tudo. Há sempre uma enormidade de coisas novas que vamos descobrindo enquanto escrevemos. Confesso que isso é uma das minhas maiores motivações para escrever: a constante descoberta. Quem me acompanha neste trilho sabe perfeitamente que nunca pode confiar no que eu digo, porque acabo sempre por alterar, mudar, acrescentar coisas novas. É um trabalho constante.
Escolha, mas escolha em consciência. Faça-o de verdade, procure encontrar propósitos e justificações minimamente verdadeiras para ter feito "aquilo". Não se perca aqui. A sua história precisa de escolhas. Faça uma lista do que precisa de escolher e vá completando como se fosse um jogo. Divirta-se e não deixe de dormir (pelo menos nesta fase inicial). Escolha sem filtros, sem medos e com consciência de que a qualquer momento pode voltar atrás e fazer de novo, se entretanto descobrir algo melhor - eu já o fiz, reescrevi 4x o primeiro volume de BH. Às vezes, as histórias só se encontram quando falhamos e voltamos atrás para fazer de novo. Seja verdadeiro consigo mesmo quando escolhe, porque a história é SUA. 

MANTER AS ESCOLHAS: 

Depois de termos algumas escolhas feitas (para as quais, com o tempo, encontraremos justificações plausíveis, mesmo que ao início não as compreendamos), há que saber manter a coerência narrativa. É aqui que muitos de nós erram. Se escrevemos vários episódios em que a personagem age de forma brusca, não podemos, perante um novo desafio, fazê-la aceitar o inevitável com um sorriso no rosto. Esta manutenção deve ser firme e rigorosa. Se a personagem tem cabelo AZUL, por favor, não digam na página 300 que ela tem cabelo VERDE, a não ser que o leitor tenha sido informado que ela pintou o cabelo. Não lhe chamem ANTÓNIA, quando no início era a MARIA. Parece ridículo, mas isto acontece muitas vezes. Manter as nossas escolhas é uma das formas mais íntegras de defendermos as nossas histórias
Para ajudar nesta fase, se não dormirem com as personagens e as virem em todos os lados, façam listas. Arranjem um caderno e escrevam tudo o que sabem sobre elas. Façam esquemas, se isso vos ajudar. Encontrem a melhor forma de manter as escolhas, porque fazê-lo confere sentido de verdade e consistência à história - não sei como chegar lá de outro modo. Além disso, torna as personagens reais como aquelas que se cruzam consigo na rua. Quem é que quer ficar à margem, quando pode ir até ao fundo? Há tantas histórias que ficam muito longe do que podiam ser. Uma personagem complexa ajuda a ter uma história verdadeira. 

ENCARAR O PERFIL DA HISTÓRIA E DAS PERSONAGENS:

Uma das etapas mais fortes da escrita é aquela em que percebemos que a decisão começa a ser quase mínima, nós tornamo-nos cada vez mais apenas nos contadores da história, já não nos desenhadores. Continuamos a construir episódios, a apresentá-los e a torná-los reais, mas já sabemos perfeitamente como a personagem vai reagir - ainda assim, surpreenda o leitor, só não vale defraudar as expectativas. É injusto, não é? Andamos a convencer o leitor de que a MARIA vai ficar com o PEDRO e ela acaba sozinha. E nós até sabemos que ela não quer ficar sozinha... não vale ser mau para as personagens, muito menos para os nossos leitores. Ter consciência do que é melhor para a história é saber aceitar que foi assim que quisemos que fosse quando fizemos as nossas escolhas. 
Muitos escritores conhecidos referem este ponto com alguma sabedoria, referem o quão apaziguador é saberem que perante A e B, a personagem vai escolher A, porque é assim que a personagem é. Não vale a pena contrariar a essência da personagem e a própria direção da história quando fomos nós que decidimos assim (na altura das escolhas).

Se chegar aqui e quiser bater com a cabeça na parede, porque "afinal" não faz sentido para si, arregace as mangas e volte atrás. Faça de novo de maneira a que a sua consciência fique tranquila e o seu coração feliz com o resultado. Desistir não é opção, não é opção para quem já foi tão longe.


FIO NARRATIVO OU SEQUÊNCIA NARRATIVA: coerência e coesão literárias.

Infelizmente, não há uma ciência exata que me permita dizer de forma simples como se chega a isto - penso que, simplesmente, na nossa cabeça, depois de termos feito tantas escolhas, de conhecermos as personagens, de sabermos "o que acontece" e "como acontece", conseguimos olhar para o nosso "estendal" e encontrar uma ligação entre tudo. Talvez seja algo que depende de nós próprios, da história que decidimos escrever, da forma como lidamos com a escrita e os seus múltiplos trilhos. 

Uma das minhas formas preferidas de compreender se estou a conseguir ter uma sequência que faça sentido é reler. Muitas vezes, simplesmente volto ao começo de tudo. Para mim esse procedimento é fundamental. Ajuda-me imenso a antecipar a revisão, porque, particularmente, sou uma pessoa muito rigorosa e levo isto a sério (levo mesmo, não o estou a escrever só porque é bonito). Sou incapaz de ler uma página sem acrescentar coisas, reescrever partes, corrigir pormenores que parecem insignificantes. 
Se a releitura não for o suficiente para perceber se há uma sequência, faça um estendal: arranje um fio, use molas e vá juntando papelinhos com os "episódios", não se esqueça de unir (sabe-se lá como) o tema, as personagens, o espaço, o tempo e todas as outras informações sobre a história. Faça uma teia visual, se isso o ajudar ou então um grande desenho. Temos que conseguir visualizar a nossa história - se conseguir fazer isso mentalmente, melhor, mas se não for capaz, isso não o torna menos escritor.

CONCLUIR A HISTÓRIA: o final.

Só porque já escrevemos quinhentas páginas, não julgue que um epílogo - ao estilo telenovela - resolve o assunto. Sim, claro que é normal, muito normal e usual, mas faça o favor de dar à sua história tudo o que ela merece: um final é tão importante como qualquer outra parte.
Ernest Hemingway reescreveu o final de "Adeus às armas" 39 vezes. Não precisa de reescrever o seu, somente não destrua o fio narrativo que tanto trabalho deu a construir só porque tem "mesmo" que acabar a história. A história só acaba quando o escritor quiser e como quiser, pelo menos até ter um editor a ralhar consigo, porque o desiludiu no final (se ele for leitor).

APONTAMENTO GERAL: o processo de escrita como um todo.

Perca-se nesta fase. Acredite em mim: escrever é a fase mais incrível da experiência de ter uma história. É aquele momento em que tudo é nosso (só nosso) e sabe tão bem não termos ninguém para desiludir só porque escrevemos algo que decidimos escrever. Viva este momento como se fosse o único. Ter um livro não começa na publicação, um livro começa quando decidimos escrevê-lo. 

. Há quem diga que escrever histórias é uma das poucas formas de imortalizarmos os nossos pensamentos: eu não tenho dúvidas disso. 

Dê o seu melhor. Ame o que escreveu. É seu. E será sempre seu. 




2 comentários:

  1. Eu sou tão grata por tudo. Sempre aprendo algo com você. ♡♡

    ResponderEliminar
  2. Publicação fantástica! Irei sem dúvida partilhar!!

    ResponderEliminar

Diga-me o que pensa, aquilo que quiser.

Doce memória, eterno amor